Chapecó – O menino de camiseta branca e calça azul estava sentado em frente a sala. Movimentou os pés e mexeu rapidamente as mãos. Olhou de um lado para o outro. Repetiu duas vezes os movimentos com a cabeça. Pegou o tablet e fixou os olhos no horário. “Nove e oito”, expressou baixinho.
Uma, duas, três e uma sequência incontável de ruídos causados pela sola do calçado em contato com o chão. O menino exalava ansiedade em todos os seus movimentos. Sem demora, apareceu quem ele esperava. Brevemente o moço alto e magro abriu a porta e despertou a tranquilidade e satisfação do menino, que de imediato levantou como se fosse passar por um portal cheio de magia. Diversos traços e cores estavam expostos na sala. Foi nesse ambiente repleto de telas, folhas, lápis, pincéis e tintas, que Samicler Haziel Gonçalves partilhou sua história.
A criança dos sonhos coloridos, nasceu em Concórdia no dia 26 de abril de 1974. Foi no interior, em meio a bois, cavalos, plantações e caminhões, que Samicler teve os primeiros contatos com a arte. Por meio dos traços e das pinceladas, o tio delineava o modo de vida dos agricultores. O acesso aos materiais para os desenhos e pinturas era difícil no tempo. Entretanto, o tio deixava-o inspirado. Logo, o desejo de criar mundos era ainda maior. Assim sendo, quando conseguia lápis, tintas e papéis, Samicler sentava no palheiro e saciava a vontade de criar.
O convívio com o garoto que perdeu seus pais e foi criado por macacos em uma selva africana, só iniciou quando Samicler se mudou para Chapecó. Foi na capital do oeste catarinense que, aos sete anos, ele conheceu a televisão e assim tornou-se amigo do Tarzan e de tantos personagens famosos. O encanto pelo desenho se transformou em um meio para fazer amizades e inserir-se em lugares e contextos que desejava. Era muito mais fácil participar de uma partida de futebol, se o menino distribuísse os desenhos para os seus colegas.
Da selva para os cowboys. Do velho oeste, dos boiadeiros para o “superamigos” e todos os desenhos que ressaltavam o corpo humano. O hobby se tornou o caminho de tijolos que indicava a direção certeira para a sua grandiosa profissão. No auge de sua carreira, quando o seu trabalho coloriu às páginas dos gibis norte-americanos, Samicler passou por dificuldades.
Todos os traços desse grande desenho chamado de “vida” foram apagados e, em questão de segundos se tornou uma tinta preta que cobriu todo o papel. Samicler conheceu um lugar sem energia, sem luz e sem vida. De todas as ambulâncias que foram chamadas, somente a sexta pôde atendê-lo.
Os segundos de silêncio libertava o sentimento de dor. Naquela sala rodeada de super-heróis, Samicler reviveu – nas memórias – a sua história calado, pois os gritos não saiam com a força da voz, eles apenas eram sentidos, pareciam estar isolados em uma sala acústica. Quietação, não havia nenhum tipo de som, mas o silêncio soube gritar. “Morri no hospital”, disse Samicler. Porém, as palavras foram ditas num tom baixo, como se não quisesse impedir o silêncio de falar por si só.
Após tirar parte do tumor que diminuía o tempo de vida de seu paciente, o médico não deu detalhes sobre os exames, apenas frisou “você só precisa fazer o que mais gosta”. Samicler não sabia que estava numa maratona contra o tempo. Tampouco soube pelo doutor. Se as paredes têm ouvidos, foram elas que também espalharam o que a secretária do médico contado no salão de beleza.
O diagnóstico foi descoberto primeiramente por todos os seus conhecidos, até que finalmente chegou em seus ouvidos. “Câncer”, nem o zodíaco, nem o caranguejo mereciam ser relacionados a esta expressão. A palavra prevê a vida de um, ao mesmo tempo que pode tirar a vida do outro. Escutá-la com a dor, sem presságio e misticidade do signo, é o desafio mais rigoroso que alguém precisa superar.
O tumor cresceu e não foram 10 ou 15 vezes mais. Ficou 40 vezes maior. Logo, esse crescimento rápido que comprimia o cérebro, precisava de controle. Assim sendo, outra cirurgia foi realizada para tirar parte do tumor. Porém, duas cirurgias não foram suficientes. O doutor deixou claro, “Você pode escolher se deseja fazer a terceira cirurgia. Mas têm 5% de chance de dar certo”.
Samicler sempre acreditou em uma força maior, algo ou alguém que pudesse fazer o que o homem, mesmo com anos de estudo, é incapaz. Portanto, leal a sua crença, deitou-se no chão, pois era forma mais baixa que poderia ficar diante de Deus. Mesmo que o médico não acreditasse em Deus, antes de aceitar e realizar a última cirurgia, Samicler pediu a intervenção divina.
Ninguém nunca naquele local entrara sorrindo ao saber que a morte poderia fazer uma visita. Porém, Samicler entrou no hospital em paz e com um sorriso que não coube no rosto. Nunca desejou o fim de sua vida. Todavia, deixou registrado em um livro as orientações para o seu filho.
Se o contato de uma agulha com a pele é irritante, nove agulhas no braço não parece algo muito agradável. Amarraram as pernas e os braços. Em seguida mais nada era possível enxergar, estava novamente em meio de um blackout. Outra vez morreu. Em sua rápida viagem sem destino, Samicler pôde escolher entre dois caminhos. No trajeto à sua direita, justamente no braço o qual sentiu as últimas picadas, uma cidade vazia, triste coberta por um grande lençol marrom e folhas secas.
O caminho de mato à esquerda levava ao lugar que talvez qualquer ser vivo desejaria conhecer. Naquele ambiente as cascatas eram baixas, o movimento da água era sereno e, no fundo dos riachos as pedras preciosas emitiam luzes coloridas. Nem a população de Holambra em São Paulo, nem a população de Amsterdam na Holanda em algum momento puderam presenciar tantas flores. Quantas cores e cheiros. Flores, flores e flores…
Da escuridão, sem malas prontas, o homem viajou para um lugar belo. Entretanto, a viagem ainda custava muito. Uma vida? É demais! O passeio precisou ser adiado. Quem sabe um dia, pois todos farão essa viagem e de preferência sem planos. Samicler, acordou. Samicler, reviveu. “Samicler, outra vez, se negou a morrer”, disse o médico.
Novamente muitos exames foram realizados e o improvável aconteceu. Uma cachoeira escorreu pelos olhos, o doutor não soube conter as emoções. O tumor sumiu e, por mais que o médico não duvidasse de sua experiência e conhecimento profissional, um milagre ocorreu. Até mesmo a ressonância que indicava que o paciente estava cego, não tinha sentido nenhum, ele estava sentado à sua frente e era capaz de ver qualquer coisa.
Ao saber que o pai estava careca, “carequinha” o menino foi buscá-lo no hospital. Desta forma, Samicler percebeu que não precisava traçar o Batman para ser reconhecido, não havia necessidade de atuar no mercado internacional. Ele precisava viver o momento, precisava ficar ao lado de sua família.
“Temos uma cultura destrutiva e egoísta, independente de quem sofra. Tento criar minhas histórias num contexto que agrega valores morais e sociais. Guie seu filho para que ande na luz, cuide para que você não precise carregá-lo pra fora das trevas”. Uma de suas principais obras, o personagem Cometa, hoje desconstrói as características de um super-herói com poderes. A principal arma deste personagem cultiva a paz e salva o mundo por meio dos valores e de temas relevantes. “A vida é simples, nós que tornamos tudo difícil. Não percebemos o quanto as pessoas são importantes. Não valorizamos os sentimentos partilhados em um único abraço”.
O menino de camiseta branca e calça azul novamente estava sentado, mas não movimentou os pés e mexeu rapidamente as mãos. O menino de camiseta branca e calça azul já estava no lugar que tanto queria, pois era naquele espaço pequeno, mas cheio de magia, que ele criava o seu próprio mundo. “Preciso de ajuda”, gritou Fred. O menino de camiseta branca e calça azul era um dos alunos do Samicler. O menino de camiseta branca e calça azul expressava em cada movimento, que não desejava sair tão cedo daquele universo. O menino de camiseta branca e calça azul é um entre tantos que ensina valores e, do mesmo modo divide um mundo com o Samicler.
“Se eu precisasse escolher entre a vida que eu tinha antes do câncer e a vida de agora, eu passaria por tudo novamente para ter a vida que tenho agora”, concluiu Samicler.
Alessandra Favretto, Assessoria de Comunicação Cleiton Fossá